O Destino de Luiza

Já era noite, as luzes da cidade esquecida pelo mundo estavam apagadas.
Ruas escuras, praças vazias, apenas a entrada da igreja estava iluminada por uma lâmpada velha e amarelada.
Fazia uma semana que Luiza se mudara para lá.
Recebeu uma bolsa de estudos do governo, afim de que fosse para a tal cidade pesquisar o índice de analfabetismo local. Luiza era professora e, em pouco tempo, receberia o título de mestre.
Chegara às pressas, muito tarde e cansada. Na manhã seguinte iniciou o novo ofício, então, passado uma semana de intenso trabalho, esta seria sua primeira véspera de folga.
Luiza procurou saber aonde as pessoas iam quando buscavam diversão, como não conhecia nada e nem ninguém, achou que seria uma boa maneira de fazer novas amizades.
As ruas, extensas e silenciosas, não conduziam ser algum que pudesse lhe informar. Luiza decidiu caminhar e encontrar um lugar agradável para tomar algo.
Parecia-lhe curioso, pois pouco passava das oito horas e todas as casas estavam fechadas, sem ruídos de gente ou aparelhos domésticos. Era como se a cidade inteira estivesse dormindo.
Passando mais adiante, Luiza viu um casebre de madeira com um lampião aceso. Pela estrutura da entrada notava-se que não era uma residência e sim um comercio, uma mercearia.
Não era o que Luiza pretendia encontrar, mas, pela falta de opção, resolveu entrar.
Luiza abriu devagar a portinhola de madeira que separava a rua da varanda da mercearia. Nisso, alguém passou pela frente do lampião, mostrando-se apenas pela silueta de sua sombra. Era uma velha.
A velha, ao ver Luiza se aproximando, parou. Seus ombros se ergueram e os seus braços arquearam rapidamente, deixando os dedos curvados e duros.
A velha se assustara, como um gato ao virar a esquina e dar de cara com um cão.
- Está fechado. Saia! – Gritou a velha.
Luiza tentou explicar-se, mas antes que pronunciasse uma única palavra, a porta do casebre foi batida com força e a luz que iluminava seu interior se apagou.
Mesmo conhecendo os hábitos da gente velha e interiorana, Luiza irritou-se com a grosseria da mal-educada velha. E em resposta a estupidez com que foi recebida, bateu a portinhola com igual força. Essa, por sua vez, se rompeu e foi ao chão.
Luiza, já arrependida e envergonhada, ficou parada e olhando sem saber o que fazer. Como ninguém saíra de dentro do casebre, foi-se embora.
Chegou em casa desanimada e, sem fome, comeu um lanche sobre uma das caixas de sua mudança, que lhe serviu de mesa, e dormiu.
Na manhã seguinte acordou cedo, tomou um banho e um café forte. Aproveitou seu dia de folga para passear e conhecer a cidade da qual, mesmo sem sentir, já fazia parte.
Às sete horas da manhã, o sino da igreja batia, anunciando que começaria a missa. Luiza não praticava a religião, embora, com alguma freqüência, acompanhasse sua mãe nas missas de domingo. O soar do sino se fez tão materno que conduziu Luiza ao interior da igreja.
A igreja estava cheia, todas as pessoas sentadas, banhadas e penteadas. No altar se via duas crianças caladas, nenhuma imagem sacra ou música.
Todos se levantaram quando um jovem senhor entrou pelos fundos. O homem se apresentou como Cornélius, era o diácono da cidade que não possuía padre.
Cornélius tinha o olhar penetrante e frio, celebrou uma missa curta e bem falada.
Ao término da celebração, pediu a atenção de todos e disse:
- Senhores, é com profundo pesar que pronuncio essas palavras. Nós moradores desta pacata cidade, não estamos acostumados a conviver com os atos de vandalismo praticado nas grandes sociedades, porém ontem, uma gentil servidora de Deus, Dona Dulce, teve o infortúnio de perder o portão de sua mercearia, devido à maldade que habita o coração de um recente morador da nossa cidade...
Nesse instante, Luiza já estava ruborizada. Pensou em explicar-se, mas logo se deteve ao ver que Cornélius a olhava por cima dos óculos, enquanto seguia falando:
- ...Espero que, com a justiça suprema, esse ato maléfico possa ser compensado; e que se afaste de nós o ser que se opõe aos nossos simples e humildes costumes. Vamos em paz e que o Senhor nos acompanhe!
Todos se levantaram, inclusive Luiza que, ainda conturbada, tentava manter uma aparência serena.
Muitas pessoas olhavam para ela com ar de reprovação, sobretudo as mulheres.
Seria possível que todos já soubessem do ocorrido? As notícias se espalham rapidamente nas cidades pequenas, mas aquilo foi ontem, quando todos, seguramente, já dormiam! – Pensou Luiza.
Triste, pela maneira que começara sua nova jornada, Luiza retornou a casa. Tinha muito que arrumar e isso a faria esquecer o aborrecimento.
Mas para surpresa de Luiza, seu aborrecimento apenas começava. Ao chegar, avistou seu portão quebrado e lançado sobre um canteiro. Nas paredes de sua casa haviam escrito insultos e ameaças.
Com a fúria a lhe saltar os olhos, Luiza gritou:
- Esta é a cidade pacata que não conhece o vandalismo?
Ninguém saiu na rua para ver o que acontecia, nem mesmo uma janela foi aberta. Era como se todos já soubessem o que havia acontecido e concordassem.
Luiza derramou algumas lágrimas enquanto recolhia o portão e a sujeira que deixaram em sua porta. Lembrou de sua mãe e sentiu-se abandonada pelo afeto do mundo.
Escreveu uma carta para a mãe, pois a telefonia ainda não havia chegado àquela cidade, relatando tudo que lhe ocorrera. Selou a carta e colocou-a na caixinha do correio que se encontrava ao lado da porta de sua casa.
Amanhece o novo dia e com ele renasce o entusiasmo de Luiza. Era o primeiro dia que teria contato com as crianças da cidade. Gostava de trabalhar com crianças, aliás, era o que mais gostava de fazer.
Ainda muito cedo, Luiza chegou em uma instituição que educava as crianças carentes da região. Gostou de ver que tudo era limpo e organizado.
Passou em todas as classes distribuindo um questionário para que as crianças respondessem. No fim da manhã, recolheu os envelopes contendo todos os questionários respondidos.
Seu trabalho não acabava ai. Após receber o material, devia analisá-lo. Por isso Luiza trabalhava apenas duas vezes por semana fora de casa.
As crianças não lhe demonstraram nenhum afeto, coisa rara se tratando de crianças, mas isso não a incomodou.
Chegando em casa, abriu os envelopes e viu que nada haviam escrito na maioria dos questionários, nem mesmo os próprios nomes.
Ficou espantada, pois pela faixa etária, os alunos deveriam escrever bem.
Folheou, um por um, para se certificar de que não havia um engano, até que encontrou um deles que continha algo escrito.
Sobre o papel branco, uma frase em cor vermelha dizia:
- Vá pro inferno, vagabunda! –
A frase não a espantara, já havia trabalhado em uma instituição de recuperação para jovens infratores. Isso, lá, era até elogio. O que lhe preocupou foi que todos os outros alunos não sabiam escrever.
Luiza fez um relatório e enviou, pelo correio, para o ministério, na capital.
O tempo passava e Luiza não recebia resposta alguma. As outras escolas e instituições apresentavam o mesmo problema. Ao questionar seus coordenadores, sempre obtinha a mesma resposta:
- Estamos cientes de uma pequena dificuldade de alguns alunos, porém, já estamos tomando as providências necessárias.
E insistiam para que Luiza desse o trabalho por encerrado.
Fazia três meses que estava ali e o ministério não lhe respondia; tampouco sua mãe escrevia demonstrando qualquer interesse pela filha.
Na ocasião, aproxima-se o dia de finados, data a qual Luiza sempre acompanhava a mãe em uma visita ao túmulo do falecido pai. Por não estar presente e não poder compartir as dores da lembrança naquele ano, Luisa escreveu para a mãe contando o quanto sentia sua falta e que gostaria muito de, como sempre fez, acompanhá-la.
Ao colocar esta carta na caixa do correio, entendeu o motivo pelo qual sua mãe não respondera a primeira carta; e também não o ministério. As primeiras cartas ainda estavam ali, não haviam sido recolhidas pelo carteiro.
Cansada das condições da precária cidade, recolheu suas correspondências e se dirigiu até a sede do correio central.
O edifício da empresa ficava do outro lado da cidade, o que rendeu a moça meia hora de caminhada.
O silêncio começava a incomodar, a acomodação das pessoas lhe irritava.
Como ninguém busca providencias para o pregresso dessa cidade? – Pensava.
Quando chegou ao correio central quase urrou de raiva. Havia uma placa grafada:
“Estamos em Greve!”
Antes que o descontrole tomasse conta do seu corpo, Luiza se virou para o sentido em que veio, deu alguns passos, parou e voltou a ler a placa.
“Estamos em Greve!”
E um pouco mais abaixo:
21/10/1967
Por um momento Luiza pensou estar enganada, mas não estava.
A placa indicava que a greve havia começado há quarenta anos. Seria possível?
- Provavelmente o prédio do correio não era mais o mesmo. Preciso me informar. – Pensou.
O dia começava a escurecer, Luiza voltava para casa e, como de costume e por não conhecer muito bem a cidade, elegia sempre novos caminhos.
Algumas quadras adiante, Luiza se deparou com um extenso muro que cercava toda uma quadra. Seus portões eram de ferro e estavam abertos. A grama que revestia o chão era verde e convidativa. Luiza descalçou os pés e adentrou o belo parque nunca antes visto.
A grama foi se convertendo em pequenos caminhos e vielas, que convergiam em um jardim com uma fonte d’água.
Após passar pela fonte, Luiza se deu conta de que não se tratava de um parque e sim de um cemitério.
Caminhou tranquilamente por entre as lápides e covas.
Inesperadamente, viu o diácono da cidade, Cornélius, que, impaciente, aparentava estar esperando alguém.
Com o intuito de não cruzar com Cornélius, Luiza precipitou em esconder-se atrás de uma lápide, até que este fosse embora.
Mas Cornélius não foi. Ficou parado por algum tempo, até que alguém se aproximou. Era Dulce, a velha.
Após Dulce, várias pessoas começaram a chegar ao encontro dos que ali estavam.
De repente, formou-se um grupo muito grande de pessoas, as crianças das escolas, seus coordenadores, as pessoas que estavam na missa, entre outras. Parecia que toda a cidade estava presente para um encontro, do qual, somente Luiza não havia sido convidada.
Estranhamente, Cornélius começou a falar em latim com aquela gente. As crianças, que não sabiam escrever, respondiam em um latim perfeito.
Luiza fora capaz de escutar pouca coisa do que estava sendo dito no discurso de Cornélius, mas ouviu perfeitamente quando pronunciaram seu nome de forma agressiva.
Luiza não entendia o que toda aquela gente fazia reunida ali, não entendia porque as crianças falavam como adultos em um latim melhor que o seu.
Não se tratava de uma comemoração, pois os semblantes não eram festivos.
Talvez um enterro de alguém muito popular na cidade, pensou Luiza, embora não soubesse por que pronunciavam seu nome.
Cornélius proferiu uma frase que soara no imperativo, e assim, todos o seguiram em direção a um grande prédio localizado na lateral do cemitério.
Assim que todos partiram, Luiza aproximou-se de onde estavam para ver a quem pertencia o tumulo sobre qual Cornélius discursava.
A lápide estava suja e foi necessário passar a mão para que pudesse ser lido o seu nome.
Na pedra negra, de granito, estava gravada a seguinte descrição:
“CORNÉLIUS GRACO”
22/01/1925 - 01/12/1967
Luiza releu, com esperanças de que seus olhos estivessem enganados, mas, ao fazer, nada mudou. Era realmente o túmulo de Cornélius.
Também a pequena fotografia, já desbotada pelo tempo, confirmava que ali jazia o diácono da cidade.
- Será uma brincadeira de mau gosto? – Pensou – Não pode ser! O humor não parecia ser uma característica que definia Cornélius, mas se Cornélius está morto, quem era o homem que se apresentou como diácono usando seu nome?
Atordoada pelos pensamentos, Luiza caminhou um pouco mais, tentando encontrar alguma razão que justificasse a contradição dos fatos.
Parou em frente à outra lápide e, para seu espanto, leu-a. O túmulo pertencia à velha Dulce. Seu retrato também estava lá.
Sem entender coisa alguma, Luiza começou a sentir o medo tomando conta do seu corpo.
Luiza era quase cética, quando se tratava se assuntos metafísicos. Seu raciocínio intelectual e cientifico não lhe permitia acreditar em “bobeiras” (como costumava dizer), mas, diante dessas evidências, Luiza não sabia o que pensar.
A curiosidade fez com que ela especulasse por outros túmulos.
Em pequenos retratos, que estavam nos jazigos espalhados ao seu redor, Luiza podia reconhecer o rosto de crianças que vira nas escolas.
Apavorada, Luiza buscou a saída mais próxima e, sem perceber, deixou para trás seus sapatos.
Ao chegar até o portão por onde entrou, encontrou-o fechado. Os muros eram muitos altos para que alguém pudesse pular. Luiza seria obrigada a passar ao lado do prédio em que as pessoas estavam.
Tendo notado que se esquecera dos sapatos, Luiza, ao invés de deixar-los, decidiu que, antes de sair do cemitério, voltaria para pegá-los.
Não se pode dizer que Luiza era uma pessoa burra, pelo contrário, era bem inteligente, porém não era esperta. Era uma grande detentora de conhecimento, mas lhe faltava uma pitada de filosofia, de malandragem; e isso sempre lhe atrapalhava em circunstâncias das quais o raciocínio não pode se basear na razão.
Fazendo o percurso ao contrário, Luiza chegou onde estava antes. Seus sapatos não estavam ali. Olhou por alguns cantos e não os encontrou.
O medo de ser descoberta fez com que Luiza abandonasse os sapatos, onde quer que estivessem.
Passou silenciosamente ao lado do prédio, para que ninguém a ouvisse.
Tentou prender a respiração ofegante e ruidosa o mais que pôde.
Seu coração batia acelerado ao passar próximo das janelas.
Sem que quisesse e já fazendo, Luiza olhou, por um dos vitrais, o que se passava dentro do lugar.
Viu Cornélius ministrando uma espécie de rito. O homem estava em um pequeno altar, de frente para todas as outras pessoas.
Havia uma mesa e um animal vivo sobre ela. Era um cordeiro.
O bicho berrava e as pessoas iam até o altar, uma de cada vez, receber das mãos de Cornélius algo que lhes era colocado dentro da boca.
Após uma das pessoas sair da frente da mesa, e antes que a próxima chegasse, Luiza pode ver melhor o que acontecia.
Cornélius cortava um pedaço de carne do animal, ainda vivo, e colava-o na boca de cada um, ali presente.
A visão de Luiza ficou turva com a cena que presenciou. Ainda mais apavorada que antes, correu desesperadamente até a saída do cemitério.
A cidade, já vazia no início da noite, lhe pareceu macabra. Antes, a cidade aparentava faltar cuidados, agora parecia faltar vida.
Com os pés sangrando, Luiza correu até a estrada que passava perto dali.
Desesperada, não pensou em pegar nada, antes de partir; tampouco sentia a dor dos seus pés, enquanto deixava as lascas de sua pele, por sobre o asfalto.
Após correr por muitos metros, na estrada, Luiza avistou uma velha caminhonete se aproximando.
A moça movia os braços, freneticamente, na tentativa muda de implorar uma carona.
A caminhonete parou.
Luiza entrou, aos prantos, e pediu para que o motorista a levasse para qualquer lugar, contanto que fosse longe dali.
O motorista era um senhor branco, de meia idade, que fumava um cigarro de palha enquanto dirigia.
O homem, sem perguntar nada, tentou acalmá-la e ligou o rádio.
A moça parou de chorar, mas seus soluços eram constantes. Os olhos de Luiza, arregalados, olhavam para todos os lados da estrada.
O homem seguiu calado, pela estrada, por quase uma hora.
Luiza, já mais tranqüila, disse que desceria em alguma rodoviária e que, de lá, ligaria para a mãe.
A caminhonete foi diminuindo a velocidade até parar em frente a uma taberna à beira da estrada.
- Onde estamos? – Perguntou Luiza, com voz branda.
- Estamos perto da rodoviária. Preciso pegar uma encomenda aqui. Eu já volto. – Disse o homem.
Luiza sentindo-se aliviada, por estar a caminho de casa, relaxou a cabeça sobre o encosto do assento.
Pela primeira vez, desde então, sentiu a dor em seus pés. Luiza procurou o botão que acendia a luz da cabine e ligou-o para poder enxergar em que estado se encontravam seus pés.
Com a fraca iluminação da cabine, Luiza pode ver seus pés machucados e, mais ao lado e pouco mais embaixo do painel, seus sapatos.
Os sapatos, que Luiza perdera no cemitério, estavam ali.
Luiza começou a tremer novamente. Seu corpo suava frio e formigava.
Rapidamente Luiza saiu da caminhonete e correu o máximo que pôde.
Quando já estava distante, ouviu o som do ronco do motor ao dar partida. As luzes do automóvel se acenderam e se faziam mais fortes, conforme se aproximava.
Luiza corria com toda a força que lhe restara, engasgava-se com o próprio choro. Suas lágrimas lhe embaçavam a vista.
A caminhonete se aproximava cada vez mais rápido e Luiza começava a perder sua força.
As luzes dos faróis aumentavam e o ruído também, a caminhonete estava a poucos metros de Luiza.
Com um último resquício de força, Luiza gritou e caiu desmaiada sobre o chão da estrada.
Não mais ouviram notícias de Luiza.

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1 comentários:

Unknown disse...

Nossa, coitada da Luiza !!!
Você sabe o que aconteceu depois com ela? Será que ela comeu cravos-alucinóginos-da-Índia? Rsrsrsrsrs

Parabéns mocinho!!!! Pelo blog e pelos anos!!!

Abração!!!

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