O HOMEM É AQUILO QUE COME...


O homem é aquilo que come...
(Caesar Pierini)


“O homem é aquilo que come”, dizia o postal com a foto de um esquimó.
Aquele postal esteve, por anos, pregado a parede de uma cantina.
Muitas pessoas viram a imagem impressa no cartão, mas nunca pararam pra ler a pequena frase.
Charles era uma exceção, sempre fora!
O filho feio da família, o menino estranho da escola, o que nunca namorou, nunca ouviram falar de amigos, mas o que mais lhe doía, era a feiúra.
Charles era feio, mas tão feio que nem a própria mãe era capaz de encontrar, nele, alguma beleza.
Dizem que até o branco dos olhos era feio, pois não era branco.
Não cortava os cabelos, pois não mudaria nada.
Não remendava suas meias, pois ninguém as veria.
Não lavava os dentes, pois não sorria.
Charles desenhava, desenhava bem e com isso se mantinha.
Uma família, que o viu menino, tinha pena da criatura e por isso comprava seus desenhos.
Num quase-ritual, a família passava pela porta da casa de Charles, enquanto caminhavam para a missa.
Os dois filhos tiravam nos dedos a sorte de se aventurarem entre o portão e a porta de entrada da casa.
Os pais paravam mudos, um dos meninos abria o portão de ferro e o outro entrava, batia na porta e passava um envelope com o dinheiro por baixo dela.
E tão silenciosamente quanto os demais, Charles passava, até as mãos do menino, um outro envelope.
E sempre em silêncio.
Lembro-me que, uma vez, a menor das crianças passou o envelope e tão logo o outro saiu, mostrando as pontas dos dedos de Charles pelo vão. No susto, o garoto gritou estridentemente, o mais moço riu e o domingo seguiu feliz.
O bairro do Bixiga era encantador!
O dono da cantina era pessoa tão boa, gente de alma caridosa, cristão. Tão cristão que alimentava Charles todas as noites, contanto que Charles esperasse do outro lado da rua, até que o último cliente saísse.
Numa das noites em que, lá, jantara, Charles viu o postal pregado na parede. E olhando para o prato de deliciosas nojeiras misturadas que lhe serviam, encontrou algum sentido na frase que dizia: “O homem é aquilo que come...”
Charles arrancou-o da parede e se foi.
Sua cama parecia menor naquela noite, o costume de dormir não lhe pesava os olhos.
A pequena frase lhe voltava à cabeça.
“O homem é aquilo que come...”
E o que ecoava, em poucos minutos, passara a gritar em um silencio perturbador.
“O homem é aquilo que come...”
Indo até o espelho, Charles se olhava e pela primeira vez incomodava-se com a sua figura.
A frase não parava de lhe atormentar.
- Dormir é impossível, andar talvez resolva – pensava Charles. E saiu.
Caminhava lentamente, não acostumado com a tal inquietude. Nunca sentiu falta da beleza, pois nunca a teve.
Andando por uma das estreitas e escuras ruas da vizinhança, Charles avistou um rapaz belo e moço.
A embriaguez não permitia que o rapaz percebesse a presença de Charles.
Além de Charles e o rapaz, uma moça, de vida indiscutível, passava pela rua.
A moça passou normalmente pelo embriagado, mas assustou-se ao passar por Charles.
Num tremor de raiva, Charles se aproximava do rapaz.
Próximo aos contornos do rapaz, ficava mais evidente sua feiúra, quanto mais se aproximava, mais grosseiros ficavam os rascunhos da sua face.
Charles olhava tentando encontrar alguma semelhança com o belo rapaz, mas não achava.
Seu nariz era tão repugnante e o do outro tão delicado.
E o rosto do rapaz passava a desaparecer sobre a visão de Charles, apenas o nariz se fazia presente.
O desejo tomava conta dos pensamentos de Charles. A vontade de ter, nele, o nariz que pertencia ao rapaz era grande e dolorosa.
A imagem do postal lhe veio à cabeça:
“O homem é aquilo que come...”
O esquimó que o ilustrava parecia consentir.
“O homem é aquilo que come...”
A boca de Charles se abria lentamente na direção da face do rapaz, enquanto sua mão tampava-lhe a boca.
E a comunhão se fez ato, entre o desejo e a fome.
Assustado, Charles acordou com o remorso de um pesadelo.
Foi lavar o rosto, para aliviar a tensão do sonho.
Os cabelos lhe cobriam o rosto, e a água, os unindo, levou-os até a nuca.
Seus olhos se arregalaram ao mirar o reflexo do espelho. Charles os lavou uma vez mais e outras tantas.
Seu nariz, naquela manhã, era igual ao do rapaz do sonho.
Um suspiro de espanto escondia um pequeno sorriso no canto esquerdo da boca.
A noite chegava, e com ela, a estreita cama e a frase... “O homem é aquilo que come...”
A certeza que caminhar resolvia, fazia com que Charles abrisse a porta.
Os pesadelos já não lhe apavoravam nas manhãs seguintes.
E o espelho se fazia querido.
As velhinhas rezavam pelas pobres pessoas, inexplicavelmente, mutiladas nas ultimas semanas.
Pessoas cochichavam, querendo saber quem era o belo jovem que mudara para a velha casa do portão de ferro.
O dono da cantina servia as sobras para os cães, que aguardavam ansiosos sobre os degraus da entrada.
– Afinal, cães não incomodam ninguém – Pensava o bom-homem.
A família, a mesma de outrora, ao passar pela casa exclamava:
- Que fim levara a pobre criatura??
Charles ao ouvir, sorria, escondendo um pequeno suspiro de espanto no canto esquerdo da boca.

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1 comentários:

TAYNARA R. BOUZAN disse...

ratificando: somos o que comemos, eu por exemplo amo chocolate...rs rs

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